Torcida única fere direitos fundamentais dos cidadãos.

Hoje à tarde colaborando com o texto publicado pelo tricolor Paulinho Fernando, a Diretoria da OAB da Bahia acolheu e aprovou, nesta quinta-feira (27), parecer da sua Comissão de Direito Desportivo, presidida pelo advogado Milton Jordão, que entende que “torcida única” nos jogos entre E.C. Bahia e e E.C. Vitória fere direitos fundamentais dos cidadãos. A manifestação da OAB foi motivada por uma consulta formulada pelos clubes do Bahia e do Vitória à Comissão de Direito Desportivo desta Seccional.

Confira a íntegra do parecer:

CONSULTA

1. As Associações Desportivas, Esporte Clube Bahia e Esporte Clube Vitória, formularam, conjuntamente, por meio do Ofício 01/2017, CONSULTA, em suma, almejando colher desta Seccional opinativo sobre legalidade de Recomendação n. 01/2017, expedida pelo Ministério Público do Estado da Bahia, que reclama aos mesmos a adoção de “torcida única” em partidas de futebol válidas pelas próximas fases da Copa do Nordeste e Campeonato Baiano, quando se enfrentarem; porquanto, tal medida extrema, alcançaria interesses difusos de consumidores de esporte, prejudicando-lhes, bem como contribuiria deveras para vergastar o que denominou de “expressão da cultura baiana”, no caso, o clássico BA-VI.

2. Dessume-se, pois, não apenas das considerações fáticas e jurídicas contidas no preâmbulo da Consulta, que a Recomendação oriunda do Ministério Público feriria direitos dos consumidores e das próprias agremiações, a princípio, e se revela desprovida de elementos concretos, sejam dados científicos ou mesmo de casos concretos que justifiquem a adoção da extrema medida ali criticada.

3. Inicialmente, convém anotar que a matéria trazida à apreciação da Ordem dos Advogados do Brasil é do seu interesse e atuação, sobretudo porquanto, dentre as suas comissões especiais, constam uma dedicada ao estudo do Direito Desportivo e outra do Direito do Consumidor.

4. A hipótese ventilada na Consulta é atinente, especialmente, ao âmbito do Direito Desportivo, embora tenha nítida e indiscutível raiz constitucional, na medida em que o art. 217, §3º, da CF, obriga ao Poder Público fomentar o lazer como forma de promoção social e a “recomendação”, sem dúvida, acaba restringindo essa prática, daí ser necessária a avaliação do procedimento e das “justificativas” que nela foram sufragadas.

5. Não foi por acaso que, dentro do prestígio constitucional que o desporto passou a gozar na Constituição Cidadã de 1988, o legislador teve o cuidado de promulgar o Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/03) e uma Lei Geral Desportiva (Lei 9.615/98), normas que devem ser adequadamente aplicadas e interpretadas, sempre com espelho nos princípios e pilares constitucionais, inclusive, a própria liberdade de “reunião” em espaços públicos (art. 5º, XVI, da CF), também, no caso, para prática do desporto profissional.

6. É cediço que o torcedor, seja da agremiação mandante, seja da visitante, tem o direito de acessar aos locais públicos das partidas, uma vez ínsito à prática desportiva e o lazer dela decorrente; a restrição, ao macular esse direito, necessita muito mais do que palavras ou desejos do parquet, porém, dados cientificamente comprovados para que seja empreendida de modo a justificar a clara exceção à regra geral. Não se tolhe direitos, sem que preceda motivos inequívocos, porquanto, do contrário, estar-se-á relativizando normas e princípios que podem vir a ferir o Estado Democrático de Direito.

7. Passemos, então, à sua resposta:

8. A Recomendação do Ministério Público, de lavra do Dr. Olímpio Campinho, consiste no seguinte:

“I – Determine a adoção de torcida única nos prósimos quatro jogos de futebol entre E.C. Bahia e E.C. Vitória, quando apenas torcedores dos times mandantes poderão comparecer ao estádio;

II – Divulguem essa determinação para o público e comunique as agremiações E.C. Bahia e E.C. Vitória, inclusive, para que não haja carga de ingressos para torcedores do time visitante.”

9. Em suas razões, o Dr. Campinho afirma que um dos fundamentos seria o assassínio de jovem torcedor do E.C. Bahia, ocorrido após o último clássico BA-VI, em 09 de abril de 2017, nas proximidades do estádio. E, que o autor do delito teria sido um membro de torcida organizada do E.C. Vitória. Também, fez alusão a outra briga entre torcedores organizados, que se realizou antes do mencionado certame futebolístico, nas imediações do próprio estádio de futebol.

10. Cita ainda exemplos do futebol paulista e mineiro; traz dados percentuais sobre aumento de público em estádios após adoção de tais medidas – embora não diga qual é a fonte -; e finaliza sustentando que valores como proteção à vida e à integridade física são superiores ao direito ditos como “pessoais e econômicos”.

11. Pois bem.

12. Destaca-se da dita Recomendação o interesse de solucionar casos de violência no âmbito dos eventos desportivos, por um viés, em tese, mais fácil.

13. A idéia, como o próprio autor reconheceu, não é nova, portanto, mereceria ser objeto de maior ponderação, estudo e debate; ao revés, opta-se pela via coercitiva, o que é um grande absurdo e tremendo equívoco.

14. As medidas adotadas por outros Estados da União não podem, pura e simplesmente, ser incorporadas sem qualquer prévio estudo e análise às condições locais. E mais, adotar-se uma medida desta natureza – em data próxima à partida, frise-se -, sem qualquer lastro ou dado estatístico confiável, unicamente respaldado na força da função exercida pelo firmatário é temerário, além de ser uma mácula aos princípios e valores inerentes ao Estado de Direito.

15. Força convir que as notícias relatadas pelo Dr. Campinho como esteio concreto para impulsionar a medida extrema de realizar jogos somente com a torcida mandante presente, revelam que muitos destes problemas nasceram de contendas entre as chamadas Torcidas Organizadas.

16. Longe de querer criminalizá-las, mister salientar que não são percalços inerentes às torcidas de Bahia ou Vitória, mas sim de questões de natureza pessoal entre membros destas associações. Tal peleja não deixará de ocorrer, seja nas imediações do estádio ou no bairro onde residem seus membros. A atuação do Ministério Público poderia ser bem mais efetiva se buscasse lidar com o problema na sua plena extensão e não somente quer voltar seus olhares para a “ponta do iceberg”.

17. Outrossim, banir torcidas organizadas, proibir membros de ter acesso aos estádios, ou até determina a sua extinção, não garante em absoluto que a violência nos eventos desportivos se encerrará. Se fosse assim, São Paulo seria o exemplo da paz, já que em meados da década de 90, o Ministério Público paulista, capitaneado pelo então Promotor Fernando Capez, propôs uma serie de medidas contra torcidas organizadas, e de lá para cá, pouco ou quase nada mudou. A estratégia adotada está errada.

18. O caminho eleito pelo Ministério Público é equivocado. Busca, pela força e imposição de sua vontade, intervir na realidade de maneira abrupta e desarrazoada. Inclusive, ferindo direitos de terceiros, não apenas dos Consulentes.

19. A prática desportiva, sobretudo no alto rendimento, pressupõe a coexistência entre contendores. Um não viverá sem o outro. D’outro giro, a tolerância e o exercício de respeito ao adversário é uma máxima da prática desportiva.

20. Tais valores são trasladados para as torcidas.

21. Problemas com violência em estádios não são novidade, aqui no Brasil e no resto do mundo. Porém, a solução ideal nunca foi e nem será a mais cômoda e simplista: a de impedir que o torcedor visitante seja privado de assistir uma partida de futebol.

22. É preciso que as forças públicas, clubes, federações definam meios de se conter tal fenômeno social. E, as polícias e Ministério Público, caso identifiquem em torcedores algo além da sua balbúrdia, que procedam apurações mais delicadas e profundas.

23. No caso sob exame, depreende-se que a medida havida como uma “recomendação”, mas com feições de “determinação” é desprovida de fundamentos idôneos e suficientes para dar vazão à ofensa ao direito do torcedor da equipe visitante poder ver uma partida de futebol.

24. Some-se, ainda, que a Polícia Militar da Bahia tem expertise reconhecida na organização de eventos deste porte; o Estado da Bahia, com sucesso, sediou grupo da Copa do Mundo FIFA 2014 e Copa das Confederações FIFA 2013; enfim, não se está a tratar de assunto o qual o poder público tem o primeiro contato.

25. Por todo o exposto, entende a Comissão de Direito Desportivo da OAB/BA que a Recomendação n. 01/2017, do Ministério Público do Estado da Bahia, que determina a “torcida única” nos jogos entre E.C. Bahia e E.C. Vitória, é ilegal, porquanto fere direitos fundamentais dos cidadãos, merecendo, inclusive, ser questionada nas vias e pelas formas adequadas, perante o Conselho Nacional do Ministério Público e/ou Poder Judiciário.

Salvador, Bahia, 26 de abril de 2017.

Milton Jordão

Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB-BA

Autor(a)

Dalmo Carrera

Fundador e administrador do Futebol Bahiano. Contato: dalmocarrera@live.com

Deixe seu comentário